"Não me aproximo porque, veja bem, sabe lá quem habita a tua solidão.
Hesito. Recuo. Me afasto tristíssima. E te imagino em poses e sorrisos, voz grave e cabelos desgrenhados,
Preso nas minhas fantasias mais loucas e movimentadas.
Numa delas sou um bichinho invisível, com asas, que adentra tua casa e te observa em segredo.
Faço o contorno do teu corpo todo com os olhos, parada contra a parede do teu quarto,
imóvel, enquanto tu te atiras na cama. Cansado. Tu olhas para o teto imaginando mil coisas, memórias,
compromissos, desejos, saudades. Te fito com dor. A luz do abajur faz sombra na tua pilha de livros,
que folheei um dia e quis pedir emprestado mesmo sabendo que não havia intimidade para pedidos.
Por razões que desconheço, nossas aproximações foram sempre pela metade. Interrompidas.
Um passo para a frente e cem para trás. Retrocessos. Descaminhos.
Procuro sinais de algum amor teu. Vestígios de noites passadas.
Tu não me vês, estou incógnita a te observar. Como sempre estive,
olhando pelas janelas, de longe, coração apertado. Nós poderíamos ser amigos e trocar confidências.
Assistiríamos a filmes, taça de vinho nas mãos, e tu me detalharias as tuas paixões e desatinos.
Nós poderíamos ser amantes que bebem champanhe pela manhã aos beijos num hotel em Paris.
Caminharíamos pela beira do Sena, e eu te olharia atenta,
numa tentativa indisfarçável de gravar o momento e guardá-lo comigo até o fim dos meus dias.
Ou poderíamos ser apenas o que somos, duas pessoas com uma ligação estranha,
sutilezas e asperezas subentendidas, possibilidades de surpresas boas.
Ou não. Difícil saber. Bato minhas asas em retirada.
Tu dormes, e nos teus sonhos mais secretos, não posso entrar. Embora queira.
À distância, permaneço te contemplando. E me pergunto se, quem sabe um dia, na hora certa,
nosso encontro pode acontecer inteiro. Porque tu és o único que habita a minha solidão. "
Caio Fernando Abreu.